Onde a natureza e a engenharia se completam
A ferrovia Paranaguá-Curitiba mescla história, cultura e meio ambiente em 3h30 de passeio, que parte da capital e termina em Morretes, cidade histórica do Paraná
Descer a serra pela Ferrovia Paranaguá-Curitiba pode ser considerado uma viagem no tempo de 131 anos de história em cerca de três horas e 30 minutos. São apenas 78 quilômetros percorridos entre a capital do Paraná e Morretes, uma das cidades históricas do litoral, a uma velocidade média de 20 quilômetros por hora – o máximo autorizado no trajeto é de 35. As ruínas e as estações, do período de construção da ferrovia, passam outra impressão aos turistas e dão a sensação de viagem no tempo.
Considerada uma das viagens de trem mais interessantes do mundo (segundo o The Wall Street Journal, dos Estados Unidos), o passeio, de certa forma, lembra um bom filme, cuja história demora um pouco a engrenar, mas o clímax é dos mais interessantes. Todos os dias, o trem parte da Rodoferroviária de Curitiba às 8h15 e chega em Morretes por volta do meio-dia.
É impossível determinar o horário exato da chegada, pois a ferrovia – inaugurada em 2 de fevereiro de 1885 e construída em apenas 5 anos – não é somente turística e, ao longo do trajeto, podem ser feitas algumas paradas para a passagem de trens comerciais, que sobem a serra. O trecho até Paranaguá é usado atualmente apenas para trens com fins comerciais. Não à toa, é possível encontrar diversas pessoas trabalhando na estrada de ferro e em suas proximidades por quase todo o passeio.
A viagem ganha contornos ainda mais interessantes em função das diversas informações sobre cultura, meio ambiente e história apresentadas pelos guias, que explicam os pormenores do trajeto. Em todo o percurso, os turistas recebem informações sobre a Floresta de Araucárias, a Mata Atlântica, as cidades do trajeto (Curitiba, Pinhais, Piraquara e Morretes) e outros detalhes do passeio como um todo. Aos fins de semana, é possível fazer o mesmo passeio, mas em um vagão de luxo.
O retorno para a capital pode ser feito de trem, com a contratação de vans, que costumam retornar por outro ponto turístico tradicional do Paraná, a Serra da Graciosa, ou mesmo comprar um bilhete de ônibus em Morretes.
De Curitiba à Mata Atlântica
Na época da internet, é difícil conhecer algum turista que tenha feito um passeio sem checar as imagens da web. Se você é uma dessas pessoas, já espera de antemão passar por um dos 13 túneis ou aquele momento no qual o trem parece voar sobre um vão livre, cercado pela Mata Atlântica. Antes de chegar até lá, é preciso sair de Curitiba, da Rodoferroviária, localizada quase no Centro da capital.
Dica: quando for comprar o assento do trem, opte por aqueles do lado esquerdo, onde estão localizadas as principais paisagens do passeio, embora seja possível permanecer em pé e ver tudo com tranquilidade em qualquer local.
Eram pontualmente 8h15 quando o trem deixou o espaço, com vagões cheios em uma quarta-feira atípica de céu azul em Curitiba. Os primeiros quilômetros passam pelos bairros Rebouças, Jardim Botânico e Cajuru e percorrem duas cidades da Região Metropolitana: Pinhais e Piraquara. Ao longo dos primeiros 35 minutos do percurso, é possível observar rapidamente alguns dos pontos turísticos da capital, como o Jardim Botânico, as canaletas por onde circulam os ônibus biarticulados (um dos principais cartões postais da cidade) e o Autódromo de Curitiba.
Daí em diante, o cenário se transforma, deixando para trás as paisagens urbanas e ingressando, em um primeiro momento, pelos resquícios da Floresta de Araucárias, para chegar, finalmente, na Mata Atlântica. A Floresta de Araucárias, onde se encontra o tradicional Pinheiro Araucária, conta com apenas 3% de sua área original e está logo na saída de Curitiba. Na sequência, ingressa-se verdadeiramente na Mata Atlântica, a parte mais interessante do passeio, dona das paisagens mais belas e inesquecíveis em um dos trechos mais preservados da vegetação no país.
O clímax
Depois de mais de uma hora de viagem, as principais belezas do passeio começam a aparecer. O túnel de 456 metros de Roça Nova, o mais longo dos 13 que fazem parte do trajeto, é seguido pelo reservatório do Caiguava. Lá, o rápido visual do reservatório guarda uma curiosidade: como uma chaminé se mantém em pé mesmo embaixo da água? A guia explica que a antiga casa de máquinas, construída para gerar energia para a ferrovia em um primeiro momento, foi inundada e se esperava que a chaminé caísse com o tempo. Por enquanto, ela se mantém firme.
Com 1 hora e 25 minutos de viagem, quem dá as caras é o conjunto de montanhas do Marumbi. Dentro dessa cadeia, encontra-se o Pico Marumbi, o mais alto do conjunto, com 1.539 metros acima do nível do mar, que se ergue imponente na vista e se torna um fiel companheiro da viagem. O Marumbi tem grande importância no universo do montanhismo por ter sido o primeiro maciço a ser escalado de forma esportiva no país.
A Estação de Banhado surge com 1 hora e meia de viagem. O primeiro prédio foi construído em 1885 – de madeira – e o atual, de alvenaria, foi erguido na década de 1940, com uma arquitetura e aparência bem conservados, dando ao passageiro um ar de nostalgia no uso do trem de forma comercial daquele período.
A cascata Véu de Noiva, uma queda de 70 metros, é o ponto alto depois de duas horas de viagem. No Rio Ipiranga, a cachoeira pode ser acessada por pessoas que fazem trilhas na Serra do Mar, mas uma de suas vistas mais belas é a partir da ferrovia. Depois do espetáculo da natureza, é a vez do homem mostrar as suas credenciais, pois, logo na sequência, passa-se por túneis e dois dos pontos altos do passeio: a Ponte São João e o Viaduto do Carvalho.
Inaugurada em 1885, a Ponte São João, um dos momentos mais esperados do passeio, conta com o maior vão livre da viagem, com 113 metros de comprimento e 70 metros de altura. Toda construída em aço, ela é fruto de um projeto brasileiro – dos famosos irmãos Rebouças –, mas que usou matéria-prima oriunda da Bélgica. O seu projeto original é semelhante ao usado para a construção da Torre Eiffel. Poucos minutos depois, você pode olhar para trás e ver a ponte, posicionada em meio à Mata Atlântica.
Logo em seguida, está o Viaduto do Carvalho, considerado o primeiro viaduto ferroviário com grau de curvatura do mundo. Sim, esse é o momento para olhar para baixo e ter a sensação de voo livre em uma composição de trem. Após esses dois momentos, compreende-se o porquê de a ferrovia ser considerada uma das cem obras de engenharia mais importantes do Brasil. A partir daí, a viagem transcorre tranquilamente até o desembarque em Morretes.
Morretes, a terra do Barreado
Encrustada entre a Serra da Graciosa e o litoral do Paraná, Morretes é, ao lado de Antonina, uma das cidades históricas mais importantes do estado. Existem vários motivos para visitar o município, mas um dos principais é o barreado. Talvez o prato mais expressivo da culinária paranaense, o Barreado se trata de um prato de carne de boi, cozido em baixa temperatura por longos períodos – entre 12 e 24 horas – com cebola, especiarias e toucinho coberto por folhas de bananeira em uma panela cuja tampa é vedada com barro.
Esse método de cozimento faz com que a carne fique com um aspecto de desfiada, embora não seja. Servido com bastante molho, o prato é oferecido em boa parte dos restaurantes do município, com farinha de mandioca crua e banana. A farinha é adicionada a um prato fundo de maneira que, ao ser misturado com a carne e o molho, forma-se uma espécie de pirão, que vale a pena ser degustado. Boa parte dos restaurantes também serve frutos do mar, como peixes, camarões e siris.
Nascida em 1721, Morretes também é conhecida pela plantação de bananas e de gengibre, além da arquitetura tradicional do período de formação. Experimentar os sorvetes artesanais de banana e de gengibre – com um sabor que ou se ama ou se odeia – faz parte da visita. É possível aproveitar a estadia na cidade para caminhar às margens do Rio Nhundiaquara, refrescante no forte calor do município, que já registrou sensações térmicas superiores a 50 graus.
O clima, uma constante incerteza
Quem vive na região Sul do Brasil, sabe que o clima é, talvez, um dos aspectos mais difíceis de ser previsto. Os curitibanos, em especial, são daquele tipo de pessoa que costuma dizer que passa pelas quatro estações do ano em um só dia – um pouco de exagero, mas não deixa de ter um fundo de razão. Se você pretende fazer o passeio de trem, prever o tempo se torna uma tarefa ainda mais complexa.
Ao deixar Curitiba, o sol brilhava forte no céu com poucas nuvens – ainda que, no fim da tarde dos últimos dias, as chuvas torrenciais fizessem parte da rotina –, mas, ao se aproximar da serra, a neblina deu as caras e seguiu por boa parte do percurso.
“Cada dia de passeio, tudo está diferente. Os turistas sempre esperam o sol, mas, com a neblina, as fotos ficam ainda mais bonitas”, conforta a guia. Embora não seja claramente o cenário dos sonhos, os turistas não pareceram incomodados com as nuvens brancas que acompanharam a paisagem ao longo das próximas horas.
A bióloga alemã Jacqueline, por exemplo, saiu de Frankfurt para conhecer o Brasil. Em seu roteiro, incluiu Curitiba – para fazer o passeio de trem –, Foz do Iguaçu e Rio de Janeiro. “É um bom passeio. Eu conheci pela internet e fiquei interessada. Vê-se uma grande preocupação com a biodiversidade e o cuidado com a natureza”, conta. Quanto à neblina? “Faz parte do passeio”, diz.
O casal de Porto Alegre segue o mesmo raciocínio. “Soubemos do passeio pela minha mãe e ficamos interessados em vir conhecer”, conta Miguel Ângelo Roncatto, funcionário público, de 56 anos. “A neblina faz parte da proposta, já que não há como controlar o tempo. Para mim, foi maravilhoso e surpreendente, além de as informações me acrescentarem culturalmente”, opina Margarida Muttoni Roncatto, analista administrativa, também de 56 anos.
Serviço
Os passeios pela ferrovia Paranaguá-Curitiba partem todos os dias às 8h15, com previsão de chegada ao meio-dia. Os valores são a partir de R$ 85 para adultos para descer a serra e de R$ 65 para retornar pelo mesmo trajeto. Mais informações: www.serraverdeexpress.com.br ou (41) 3888-3488.
Texto publicado na Revista Florense